Filósofos de botequim discutem ou conversam sobre quase tudo, desde amenidades, como pratos exóticos e saborosos , qualidades de vinhos e bebidas, beleza feminina (reservam-se quando há mulheres no grupo), relacionamentos, etc., até os temas filosóficos mais complexos e as grandes questões nacionais ou internacionas. Mas sua preferência vai sempre para os assuntos controversos e para as atualidades, especialmente quando geram polêmicas. Isso sim, os incita e excita. Portanto, é natural que temas políticos, religiosos e céticos estejam entre os preferidos, principalmente, os de natureza política.
Futebol também é um tema constante, atual e polêmico, mas não costuma ganhar nenhum destaque nas discussões e só é referido "en passant" porque sabem eles que, neste tópico, não há consenso. Exceção para o futebol, apenas nas olimpíadas ou época de copa do mundo. Aí sim, nestes momentos, e apenas nestes, o assunto é valorizado e considerado.
Ora, o momento político atual – época em que é escrita esta crônica -, passa pela ansiedade nacional de saber o destino que será dado ao chamado "Projeto Ficha Limpa", esperança brasileira para impedir que políticos criminosos ou corruptos sejam candidatos ou continuem a exercer seus mandatos. E as dúvidas são se será mesmo aprovado, a partir de quando entrará em vigência, se valerá para as eleições de 2010, se vingará, se não irá transformar-se em mais um engodo político…
Estava eu com essas preocupações quando resolvi ir relaxar no "Papo em Dia", um misto de "pub's bar" e botequim de happy hour, onde costumo encontrar alguns amigos e muitos desses "filósofos de botequim", alguns até brilhantes. Sempre aprendo alguma coisa com eles. Aliás, todos aprendemos uns com os outros. Só não vou informar a localização do "Papo em Dia" porque somos um pouco egoístas e ciumentos e queremos manter a privacidade do local e da sua clientela, onde somos maioria assídua e temos tratamento especial, a começar pelas nossas mesas, em um cantinho reservado, que o proprietário só cede quando nenhum de nós está presente.
Só posso adiantar que é um lugar simples, mas limpo e requintado, sem aquele estridente som ao vivo (o som lá é ambiente e baixo, intercalado com música instrumental, para que se possa conversar). Lá, saboreiam-se maravilhosos petiscos de frutos do mar e degusta-se uma bebidinha honesta, quer sejam apenas batidinhas e coquetéis especiais ou uísques e vinhos de renome. Não, não servem sandubas ou almoços ou jantas. Apenas salgadinhos e outros petiscos especiais, como iscas de tilápia, camarões fritos, manjubinhas, anéis de lula refogada, carne seca em cubinhos, quibezinhos, moelas, porções de queijos e salaminhos, sachimi e bolinhos diversos, inclusive de bacalhau, típicas "comidas de botequim". A carta de vinhos é limitada, é verdade, mas o que tem dá pro gasto e como a variedade de queijos e petiscos é grande, uma coisa compensa a outra. Os precinhos são um pouquinho salgados, mas justos; e no nosso grupo, todos têm conta, podendo "pendurar". Segundo o proprietário, tem de ser assim para poder "manter o padrão, o nível do atendimento" e afastar os bebuns, motoqueiros e encrenqueiros. Com este argumento, e alegando que se sente honrado em pendurar nossas contas, ele nos convence.
Pois bem, foi nesse ambiente aconchegante e com oito amigos que, entre porções de queijos com azeite, salaminhos, carpaccio, camarões fritos, azeitonas, cerveja, uísque, vinhos e bolinhos de bacalhau, a discussão do "Ficha Limpa" começou, por volta das seis e meia da noite, estendendo-se até duas da madrugada, hora normal do fechamento. Não foi uma discussão exclusiva, porque se falou de várias outras coisas, mas foi a que predominou, porque salvo algum desviozinho aqui ou ali para se falar de mulheres, a política foi sempre o centro das conversas. Nesse dia, não tinha nenhuma personalidade ilustre, mas às vezes elas também aparecem. E foi até bom, porque os ânimos se acirraram um pouco e algumas "gentilezas e palavrãos" foram trocados entre pessimistas (eles se autodenominam realistas) e otimistas.
Não vou revelar todos os pormenores do debate porque iria estender demais esta crônica. Mas posso resumir dizendo que começaram por elogiar a iniciativa do povo brasileiro, a participação dos internautas e da imprensa na mobilização, os 4 milhões de assinaturas conseguidas e a vitória parcial alcançada com a aprovação do projeto na Câmara Federal. Até aí todos estavam de acordo: o povo fez a escolha certa ao optar pela mobilização nacional, fazendo com que a pressão popular, desta vez, contasse com a ajuda dos blogs, da internet e da mídia. Pressão popular organizada, divulgada e apoiada. Este é o caminho, concluíram. Esta discussão se deu no mesmo dia em que se consolidou a aprovação definitiva do projeto, na Cãmara, depois de derrubados todos os "destaques".
Ufa, que alívio! Chegamos, por unanimidade, a um consenso, o que é raro nesse tipo de discussão. Fiquei feliz porque "filósofos de botequim" dificilmente erram nessas questões. Mas a alegria durou pouco. Mais uns goles adiante e um contestador lançou a primeira dúvida: "Vocês acham que essa lei, se aprovada, vai vingar?" Imediatamente, um outro (pessimista?) respondeu: "Não creio, os políticos não têm interesse nisso e só estão levando o projeto adiante porque estão sob pressão popular e em ano eleitoral". Pronto! Foi o suficiente para que, dali em diante, cada um desse o seu palpite, uns poucos acreditando, a maioria, duvidando.
Questionaram o texto-base do projeto, totalmente descaracterizado, com o objetivo de permitir ao político fugir do enquadramento. Citaram como exemplo o "efeito suspensivo" incluso no texto legal, mecanismo que permite ao político processado ou condenado recorrer à instância superior, permanecendo no cargo até a sentença final (que normalmente não virá, por prescrição, ou só virá no fim do seu mandato ou após ele). Um outro levantou tambem a questão dos "crimes ambientais " cometidos por políticos e que só levam à inegibilidade se a condenação for superior a dois anos, não se conhecendo nenhum caso em que tenha havido tal condenação. Um terceiro, levantou a questão do "após condenado, por órgão colegiado", o que deixaria de fora os processados mas ainda sem sentença final condenatória.
Bem, esmiuçados esses e outros pontos, e depois que dois conhecidos "fichas-sujas" (Paulo Maluf e Sandro Mabel) desfilavam tranqüilamente entre os parlamentares, e concordando em que fossem retirados os destaques dos seus partidos, lançou-se suspeição sobre o "acordão do efeito suspensivo", feito a portas fechadas com os líderes de partidos e que permitiu a aprovação do projeto, com a retirada dos nove destaques que faltavam ser votados.
Por último, analisaram a declaração do Senador Romero Jucá, que afirmou em alto e bom som, diante das cãmeras da televisão, que a aprovação do "Ficha Limpa" não é prioridade no Senado. Em outro momento, disse ainda que será preciso muita cautela com esse projeto porque afeta a vida dos políticos e poderá ser usado como "arma intimidatória". Declarou também que irá propor novas alterações ao projeto, para torná-lo mais justo (para quem?). Sabendo-se que se o projeto não for aprovado e sancionado até 10 de junho não valerá para as eleições deste ano, há um risco iminente de que isso aconteça. Com a colaboração do ilustre senador, é claro.
Bem, é isso. Os filósofos de botequim, afinal, concluíram:
Se eles estão certos ou não desta vez, só o tempo dirá. E quando isso ocorrer, volto a este espaço para comentar.
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Como prometi, volto hoje, 13/06/2011, mais de um ano depois da publicação do texto acima, para atualizar a matéria e dizer que os "filósofos de botequim" acertaram em todas: a aplicabilidade da lei foi considerada inválida para as eleições de 2010 e ontem anunciou-se que os fichas-sujas eleitos remanescentes estão tomando posse (outros já tinham assumido antes). Não tiro os méritos dos filósofos que acertaram tudo, mas na política brasileira isto não é muito difícil de prever porque a pouca vergonha, a enganação, a corrupção e a mentira são rotinas.